CONTEXTO
Em 2022, no âmbito do Laboratório do Desconhecimento, iniciámos o trabalho laboratorial em torno do tema de algoritmos matemáticos, em particular de Inteligência Artificial, para a previsão de crises epilépticas. O objetivo desta área científica, no futuro, será a integração dos algoritmos em dispositivos de modo a prever crises, comunicá-las ao doente e, idealmente, desarmá-las através de mecanismos de neuromodulação.
Esta pesquisa, no Laboratório, realiza-se com a colaboração de investigadores do Centro de Informática e Sistemas da Universidade de Coimbra, onde é desenvolvida investigação nesse campo.
Um dos investigadores, que integra a equipa do projeto, expõe o tópico assim: “Imaginem que são médicos que cuidam de doentes cuja medicação não suprime completamente as crises epilépticas. Um investigador apresenta-vos um dispositivo que, lendo a atividade elétrica do cérebro, consegue prever as crises. Na prática, um doente está a conduzir, ouve o alarme do dispositivo, pára o carro, tem a crise, e o mal é minimizado. Mas, para além do dispositivo poder falhar, há outro problema: as suas operações matemáticas são tão complexas que nem o investigador as consegue humanamente explicar. Vocês, enquanto médicos, dariam o dispositivo aos vossos doentes?”
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Esta ferramenta gera a capacidade de máquinas executarem tarefas complexas com características que associamos à inteligência (aprendizagem, raciocínio, inferência, reconhecimento de padrões). A Inteligência Artificial está presente em múltiplas vertentes do nosso quotidiano: redes sociais, mecanismos de venda online, sistemas de mitigação de riscos (deteção de fraude bancária, contratação de indivíduos, contratualização de seguros), jogos de computador, estratégia militar, sistemas de tradução, aeronáutica.
Na sua forma mais comum, tal como em previsão de crises, esta inteligência é adquirida por algoritmos de aprendizagem supervisionada: damos a um algoritmo pares de entrada-saída, e este constrói um modelo para, com novas entradas, adivinhar a sua saída. Nesta área científica, os investigadores fornecem aos algoritmos dados de atividade eléctrica do cérebro tanto de estados pré-crise, como de estados estáveis, com o objectivo de construir um modelo que os consiga distinguir.
Aprender com base em exemplos é uma ideia muito simples, mas extremamente poderosa. Aprenderemos nós com exemplos? Se dermos todo o texto existente do mundo, em pares de entrada-saída, a um algoritmo de Inteligência Artificial, ele conseguirá aprender tudo? É surpreendente o funcionamento do ChatGPT: com base na pergunta que fazemos, ele dá-nos a palavra mais provável para continuar a frase. Depois, ele adiciona essa palavra à pergunta original, formando uma nova entrada para o modelo, que então nos dá a próxima palavra mais provável como resposta. Ele repete este processo até ao fim da resposta. Concluindo: é difícil perceber se o ChatGPT “pensa” a frase toda antes de a dizer, talvez, mas o seu raciocínio é palavra-a-palavra. Não é de loucos?
MEDICINA
A medicina é uma das áreas em que se aplica a inteligência artificial há algumas décadas, nomeadamente em ferramentas de apoio ao diagnóstico. Regressando à questão anterior: será aceitável uma decisão de alto risco e de âmbito médico através da utilização de mecanismos cujo “raciocínio” não conseguimos compreender completamente? Qual a margem de erro aceitável para a utilização destes dispositivos? Qual o limite para uma decisão errada ser um mal menor face às vantagens potenciais? O que significa para uma pessoa com epilepsia ter as crises previstas por uma máquina ligada ao seu cérebro?
A experiência e a percepção de um doente são elementos que pretendemos integrar no processo de criação. A nível metodológico, organizámos sessões de discussão reunindo artistas, cientistas e clínicos que trabalham na área. Também realizámos entrevistas com médicos, doentes e cuidadores, recolhendo as suas experiências e perspectivas sobre esta doença neurológica e a possibilidade de usar dispositivos como os descritos.
Para a organização das entrevistas e consultoria científica, contámos com o apoio do Centro de Referência de Epilepsia Refractária dos CHUC. Definimos um guião de perguntas, que serviu de base para entrevistas semi-estruturadas, e que foi submetido ao conselho de ética dos CHUC. Os testemunhos recolhidos foram depois utilizados como material de referência para a criação dramatúrgica.
O ALGORITMO DA EPILEPSIA (Espetáculo)
São várias as questões éticas que surgem quando se trabalha neste tipo de temáticas. Contudo, ao mesmo tempo, elas constituem ótima matéria para exploração dramatúrgica, uma vez que tocam preocupações contemporâneas e futuras, mas também dilemas humanos universais e intemporais.
“O Algoritmo da Epilepsia”, realizado em estreita parceria com o Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, resulta da colaboração entre a Marionet e o Departamento de Engenharia Informática da Universidade de Coimbra, sendo uma das ideias à qual foi atribuído financiamento pelo First Foundation Project da Feedzai, empresa criada por docentes do Departamento de Engenharia Informática. Os ensaios e a escrita do texto tiveram contribuições de investigadores do Centro de Informática e Sistemas da Universidade de Coimbra, de pessoas com epilepsia e profissionais de saúde.
O ALGORITMO DA EPILEPSIA (Conversa pós-espetáculo)
Após a última sessão de apresentação do espetáculo “O Algoritmo da Epilepsia“, no dia 2 de julho de 2023, o Teatro da Cerca de São Bernardo acolheu uma conversa abordando informalmente os vários temas que inspiraram esta peça e que nela encontraram uma expressão artística. Além da participação aberta ao público, no painel de convidados estiveram diversos profissionais ligados à investigação científica, à medicina e ao teatro, bem como uma pessoa que sofre de epilepsia.
Tal como durante o processo de criação do espetáculo, a participação pública foi muito valorizada, pelo que os presentes foram incentivados a levantar questões ou a enriquecer o debate com relatos e experiências pessoais. Este foi um momento de partilha pessoal e científica de grande pertinência, tendo em conta um dos objetivos principais do espetáculo apresentado imediatamente antes, isto é, o incremento do conhecimento geral sobre a doença epiléptica e demais temáticas associadas, através do Teatro e da criação artística.
NUVENS – MARIONET DIGITAL (Objeto Artístico Digital)
Integrado neste projeto, surgiu “Nuvens“, um vídeo que corporiza a segunda expressão do Marionet Digital, que pretende ser um espaço para a expressão artística, criado em formatos pensados para comunicação digital. Este objeto artístico digital aborda o tema da epilepsia, no qual imaginamos o que poderá estar na cabeça de uma pessoa com esta doença.
A epilepsia é uma doença do sistema nervoso central que provoca descargas elétricas anormais dos neurónios. É conhecido que 1% da população mundial sofre com esta doença, sem olhar a géneros ou idades. Para além da gravidade da doença em si, dado o risco de acidentes, traumas, crises prolongadas e morte súbita, provocada pelas convulsões, esta também está diretamente relacionada com condições do foro psicológico (ansiedade, depressão, etc.) e sociais (isolamento social, desemprego, etc.). No entanto, com a evolução da medicina é possível controlar a doença e reduzir os efeitos colaterais da mesma, promovendo a saúde e o bem-estar das pessoas que sofrem com epilepsia.